Não adianta ser pintado, catulado, raspado, "engomado" e todas as outras questões que as pessoas enchem a boca para dizerem quando descrevem suas iniciações no culto à natureza, Òrìṣà, se ela não for um bom SER HUMANO.
Você pode ter todos os preceitos e protocolos em dia. Pode ter passado pela iniciação em vinte e um dias, em trezentos dias ou apenas um, mesmo assim você só terá passado mesmo por ela. Ter vivido e absorvido o necessário para se transformar pra melhor é bem diferente.
Recordo-me que em meu Ilé Àṣẹ de Itanhaém-SP, bateu na porta um jovem de vinte anos, precisando de ajuda. Comum acontecer. O que ele queria? Acender uma vela e pedir proteção. Pasmem! Aquela pessoa estava sem banho a meses, com fome, precisando de tudo o que qualquer pessoa tem direito para viver dignamente e ao se olhar no espelho ver representado em si esta dignidade. Ele não me pediu nada além do que acender uma vela para pedir proteção. Então perguntei a ele se era somente isso mesmo que ele precisava. Ele me respondeu: “E agradecer também, porque estou vivo!”
Imediatamente pedi ao meu companheiro, Bàbá Luis Fernando T´Ògún, pra abrir o portão do Ilé Àṣẹ para que eu atendesse aquele rapaz. Seu nome? Tiago.
Ao conversar mais um pouco com ele percebi que ele tinha alguns problemas de saúde. Magicamente, uma filha minha de Ọ̀ṣun, terapeuta holística e mãe de dois filhos chegou ao Ilé Àṣẹ para ver se eu precisava de alguma coisa e eu disse que sim, de ajuda pro Tiago.
Coloquei ele para tomar banho e ele pediu minha presença. Olhei pra ele e percebi que ele tinha TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo). Ele entrava e saía do chuveiro várias vezes como quem tivesse entrado debaixo d´água de forma errada. Usava o sabonete de forma diferente e desconfiado. Repetia movimentos de forma a quase entrar em transe.
Não tinha sinais de estar embriagado e nem drogado. Percebemos outras dificuldades em sua saúde mental. No meio de seu banho ele me disse: “Você pode pegar alguma planta pra me proteger?” No mesmo instante um pedreiro que estava construindo um condomínio ao lado do Ilé Àṣẹ me chamou pelo muro e perguntou se poderia cortar um pouco as folhas do dendezeiro pois estava entrando muito na construção; respondi: “Pede licença a Deus e sim, corte e jogue por cima do muro pra eu usar!”
Logo fiz um banho de màrìwò (folha do dendezeiro), banho de Ògún.
Dei este banho no Tiago. Ele se secou repetidas vezes com a toalha. E ao se vestir com roupas que eu mesmo dei a ele, minhas, pediu a vela.
Foi até a casa das almas, onde fica a Cruz de nosso Salvador Jesus Cristo. Acendeu com muita dificuldade, devido ao TOC e orou.
Alimentamos ele e na sequencia foi embora. Dias se passaram e infelizmente Tiago foi confundido com alguma pessoa ruim e foi espancado na rua. Gravaram um vídeo dele sendo espancado, a chutes e a pauladas, na cabeça, abdome e por todo o corpo. Amarrado com cordas e atirado ao chão. Uma filha minha de Ọ̀sányin me ligou e pediu pra eu abrir o meu facebook. Lá estava o vídeo viralizado. As cenas são as mais terríveis possíveis.
Tiago voltou ao Ilé Àṣẹ, pedindo ajuda. Todo machucado. Andou mais de 10km para chegar até nós. Ao olhar para ele perguntei o que houve (mesmo eu já tendo naquele mesmo dia assistido as cenas). Ele me contou com muita dificuldade sobre o local que estava, bairro Coronel, e o que ocorreu. Com um papel ensanguentado percebi que era um B.O policial. Quando li entendi que o próprio moço que achou que ele estava mexendo com sua esposa prestou queixa das pessoas que rotularam Tiago como estuprador e sem mais, amarraram e torturaram o menino.
O mesmo homem que o julgou errado, o ajudou pela culpa de seu julgamento falho. Na sequência, acharam o tal estuprador que parecia o Tiago e o mesmo foi preso.
Tiago na narrativa me disse: “A sorte é que você chamou um homem gigante pra me ajudar. Eu vi você lá! (Eu não estava, mas ele achou que sim) e continuou dizendo: “ele saiu da mata e deitou em cima de mim e ai eu não senti mais dor!”
Em minha mente com certeza quando ele narrou esse homem dizendo gigante e saindo da mata, lembrei do banho de màrìwò de Ògún.
Òrìṣà apoia o ser humano a pedido do Deus Supremo quando precisamos passar por momentos difíceis.
Pedi para Bàbá Luis Fernando T´Ògún ofertar e agradecer a Ọlọ́run (Deus Supremo) e a Ògún pela proteção e apoio ao Tiago. Este, já havia sido levado ao hospital, mas parece que por ser andarilho quase nada fizeram, nem curativos, nem colocá-lo num abrigo.
A narrativa é longa, então vou agora resumir. Cuidamos de Tiago, passou a morar em nossa casa por dois meses, achamos a família, que quase sem recursos ajudava como podia, levamos ele aos médicos, foi diagnosticado: Psicose, TOC e esquizofrenia.
Conseguimos os remédios, eram nove por dia. E eram dias muito difíceis. Tiago tinha um dom incrível e uma intuição fora do comum.
Iniciei Tiago em Ọ̀ṣun, a pedido dele. Do jeito dele. E fiz sem sacrifício animal. Tiago foi melhorando e então colocamos ele para morar com sua família. Tiago nesta época estava bem melhor. As doenças controladas e seu orí restaurado.
Deus é realmente incrível! Mo dúpẹ́ Ọlọ́run! Mo dúpẹ́ Ìyá mi Ọ̀ṣun! (Agradeço ao dono do céu, Deus Supremo, e a minha mãe Ọ̀ṣun).
Eu me mudei para Florianópolis e abri o segundo Ilé Àṣẹ. Porem, sempre volto ao de Itanhaém-SP para atender aos filhos e filhas do estado onde nasci. E numa dessas voltas pra lá, Tiago bateu palmas no portão. Estava mais gordinho e com sua bicicleta. Olhou pra mim e disse: “Bàbá Jonathan! Que saudade! Eu vim agradecer vocês! Estou curado!”
Eu não vi sinais de TOC, não vi sinal de mal nenhum. Ali diante de mim estava um ser humano humilde e com sua dignidade restaurada.
Quem nos ajudou? Quase ninguém. Apenas quatro ou seis pessoas, além de meus/minhas filhos/filhas e minha mãe (Cristã). Pedi sabonete nas redes sociais. Publiquei fotos, os vídeos, o B.O, tudo. Entre duas mil pessoas, apenas seis no máximo ajudaram.
Onde está a capacidade do ser humano raspado, catulado, pintado... INICIADO, em enviar um, apenas um sabão da costa ou de coco (que foi o que eu pedi em meu texto de apelo) para o Tiago usar um por dia até acabar, pois tem TOC? Deve ter ido junto com os cabelos na feitura.
Não adianta nada fazer tudo o que acha que se deva se fazer numa iniciação, no culto de Òrìṣà, se você antes não entender que essa iniciação é de dentro pra fora que acontece primeiro. Que o protocolo mais exigido não é o Orúkọ (nome) gritado no salão principal de um terreiro, mas o do amor ao próximo quando qualquer outro pede ajuda.
Deus e o Òrìṣà tenham misericórdia daqueles que não conseguem entender que nada adianta uma iniciação sem dar antes um restart (reinício) no ọkàn (coração).
OBS: “Neste dia que Tiago chegou pela primeira vez ao Ilé Àṣẹ eu estava com um filho de santo recolhido para uma iniciação no culto do Òrìṣà Ògún. Que também por ter perdido tudo na vida virou andarilho e magicamente bateu em meu portão. Digo magicamente, pois eu já havia visto ele uma vez e em nossa primeira conversa disse a ele que se Deus assim quisesse, eu o ajudaria de forma melhor um dia. E ele, sem saber quem naquela casa morava, bateu em meu portão. Nosso Ilé Àṣẹ não tem sinalizações na faixada. Nos reconhecemos, ele pediu ajuda e expressou o desejo de ser iniciado. Fizemos tudo. A moeda de troca? Que ele honrasse a Deus, ao Òrìṣà, à ajuda dada e prosperasse para poder auxiliar outras pessoas. Foi o que exigi. Seu nome? Thiago. Acredita? Pois é! Este foi meu primeiro dofono de Ògún e Èṣù sem sacrifício animal. Está muito bem, obrigado! Em outra oportunidade narrarei sobre essa linda vivência.
O dábọ̀ àti mo dúpẹ́ ẹ!
(Até logo e agradeço!)
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